Em janeiro de 2016, eu estava Florianópolis com uma amiga, passando as férias de verão. Foi a quarta vez em que caí no golpe do Boa Noite Cinderela e a mais intensa de todas. Ela estava sendo vítima pela terceira vez.
É difícil encontrar dados concretos e confiáveis sobre o número de ocorrências do golpe que droga as vítimas sem que elas saibam. Muitas vezes, os sintomas são confundidos com os efeitos da bebida alcoólica e até a falta de memória no dia seguinte pode ser justificada como a “amnésia alcoólica”. Mas o buraco é muito mais embaixo.
O que se sabe é que existe o intuito de roubo ou violência sexual por parte do agressor. Sabe-se lá o que mais. Entrevistei o Dr. Aaron Belczak Reinert, médico residente em psiquiatria, para entender como o Boa Noite Cinderela age no organismo. Ele explicou que nem sempre é uma droga só, mas sim um coquetel com altas dosagens, já que se espera um efeito rápido. Portanto, os efeitos variam.
“No golpe do Boa Noite Cinderela, cada agressor tem a sua própria mistura, dependendo da finalidade. Algumas drogas deixam a pessoa apagada. Outras, levemente acordada, mas sem lembrar do que fez. Normalmente, são utilizadas as drogas hipnóticas, benzodiazepínicas, alucinógenas e anestésicas, a maioria delas depressoras do Sistema Nervoso Central, deixando-o lento.”
Na maior parte dos relatos encontrados na internet, os sintomas incluem perda de controle dos próprios movimentos, lentidão motora, confusão mental, perda de memória, desmaio e vômito. É o que dizem também as vítimas que cederam seus depoimentos para esta reportagem (leia no final).
A jornalista e estudante de psicologia Adriana Leal, 40, toma indutores do sono receitados pelo seu psiquiatra. Durante 5 anos, ela fez uso médico de um fármaco de uso controlado que é comumente utilizado no Boa Noite Cinderela. Ela nos conta o motivo do remédio ser também conhecido como “a droga do estupro”.
“É uma droga que tem um efeito realmente hipnótico. Meu médico inclusive me passou a recomendação de tomar quando estivesse já deitada. O efeito é sentido entre 15 e 20 minutos. Quem estiver em vigília pode sim ser possível vítima de um Boa Noite Cinderela. O uso concomitante com álcool potencializa o efeito, sei disso por experiência, chega a dar medo”, relata Adriana.
Aaron confirma que os coquetéis de drogas conhecidos por Boa Noite Cinderela, quando combinados com bebida alcoólica, ficam ainda mais fortes. Para prevenir-se contra o golpe, as minhas dicas são: recusar bebidas de terceiros, não deixar a sua bebida ou comida sem supervisão e aceitar a bebida do bartender somente quando ele a abrir diante dos seus olhos. Mas se já sabemos disso, como ainda nos tornamos vítimas?
Para entender melhor quais são as artimanhas utilizadas pelos agressores para aplicar o golpe, conversei com um proprietário de bar sobre o assunto. Ele pediu para não se identificar, mas topou me revelar o que observa acontecer dentro do seu estabelecimento:
“Os caras são ardilosos e você nem percebe mesmo. Eles têm experiência, se você está segurando uma long neck e se vira para conversar com a amiga, ali ele encontra uma brecha e coloca a droga com um conta-gotas. Ou prepara a bebida batizada e te oferece. Eles têm seus métodos”
A Adriana compartilhou conosco: “lembro-me do caso de um paciente que meu psiquiatra relatou ter sido encontrado de madrugada em um parque onde costumava praticar exercício físico. Então a recomendação era realmente de tomar já deitada na cama”.
Se o seu medo é ter o celular roubado, sofrer violência sexual ou acordar numa banheira de gelo sem um rim, o Aaron conta que a experiência pode ser ainda mais traumática: “além dessas drogas causarem relaxamento e hipnose, causam também a supressão do sistema respiratório e quando tomadas em excesso, podem levar à morte por parada respiratória”.
Naquela quarta e última vez em que fui vítima da Boa Noite Cinderela, não consumi bebida alcoólica. O bartender me serviu uma garrafa de água, que me foi entregue sem tampa. O Curitibar foi atrás mais depoimentos, e num deles a vítima relata ter sido drogada por um sanduíche. Leia todos eles e também o meu depoimento pessoal.
“Era janeiro de 2016 e eu passava as férias em Florianópolis com uma amiga. Estávamos realmente cumprindo o objetivo de desbravar a ilha. Naquele dia, visitamos praias afastadas e decidimos ir até as dunas da praia da Joaquina para observar o pôr do sol. Entramos num lugar com uma vista bacana e passamos um tempo lá, conversando com os outros clientes, até que pedi uma água e ela, uma caipirinha. No momento em que o bartender me entregou a garrafa d’água no balcão, notei que ela estava destampada e eu não havia o visto abri-la, cuidado que eu procuro sempre ter. A amiga pediu uns goles da água antes de iniciar a caipirinha e eu bebi o resto da garrafa. Em poucos minutos, senti minha cabeça pesar e a vista ficar alterada. Considerei ser o efeito visual do lusco-fusco, já que o sol estava se pondo. Mas comecei a ficar lenta, o que e desesperou. Perguntei a ela: -Você está se sentindo meio estranha? -Estou… Você também? -Sim. É Boa Noite Cinderela, né? -Acho que é. -Vamos embora correndo daqui. Nós sabíamos o que estava acontecendo. Como comentei no início da reportagem, eu já fui vítima do golpe 3 vezes anteriormente e ela 2, pelo que me disse. Tivemos a sorte de identificar os sintomas no início, pois o efeito foi rápido e muito forte. Estávamos a poucos metros da porta do bar e imediatamente saímos correndo pela porta em direção ao meu carro, que estava estacionado em frente. Eu me apoiei na lateral do carro e uni as minhas forças restantes para apertar o botão de destravar a porta e conseguir entrar, sabendo que ainda teria que fechar a porta e trancá-la internamente para nos proteger. Estas tarefas simples foram extremamente difíceis de realizar, pois eu estava perdendo o controle sobre os meus movimentos e desprendendo-me da minha consciência. Mas conseguimos e assim que a trava interna do carro foi acionada, desmaiamos. Acordei não sei quando tempo depois, com minha amiga, também dopada, tentando me acordar para que eu dirigisse e estacionasse mais longe do bar. Isto porque os clientes estavam chacoalhando o carro, rindo, batendo nos vidros e nos chamando de bêbadas. O segurança observava tudo. O nosso agressor podia estar por ali e também estávamos a mercê de toda essa gente tirando sarro de nós. -Preste atenção em mim, e não ele. Olhe bem fundo nos meus olhos, é importante que você faça isto agora. Não desmaie. Sempre me lembrarei dessas exatas palavras, porque ela as repetiu com muita firmeza e diversas vezes. Nós realmente precisávamos sair dali. Eu respondi que não tinha condições de dirigir e ela só me dizia para não desmaiar novamente. Eu devo ter apagado mais umas 3 ou 4 vezes até que liguei o carro e dirigi até onde pude, a uns 2 quilômetros dali. Desmaiamos novamente, muitas vezes. As horas se passavam como se fossem segundos. Ela estava tão mal, mas tinha menos dificuldade em ficar lúcida que eu. Falávamos enrolado, não conseguíamos nos mover, não lembrávamos do que acontecia nos minutos anteriores, mas tentávamos lutar contra aquilo porque não estávamos seguras dentro do carro e naquele estado. Estávamos sozinhas e precisávamos nos ajudar. Nas horas seguintes, eu me lembro de perder e retomar a consciência mais vezes do que pude contar. Até que minha amiga conseguiu segurar o celular (lembra-se de que as tarefas simples eram extremamente difíceis de realizar?) e ligar para o garoto que ela conheceu na noite anterior, que foi nos socorrer. Eu tive muito medo, pois ele era praticamente um desconhecido. Ela me disse que era nossa única oportunidade de sair dali e eu não sabia qual das duas opções era a pior. Mas eu não tinha forças para raciocinar, falar ou me mover, e perdia a consciência com facilidade. Abri os olhos e o garoto estava do lado de fora, nos chamando através do vidro. Olhei para o banco do carona e agora quem estava desmaiada era a amiga. Abri a porta para ele e pedi para que ele realmente cuidasse de nós, pois estávamos nas mãos dele. Tivemos sorte em encontrar uma pessoa do bem e só o que nos aconteceu de ruim depois disso foi a estranha ressaca no dia seguinte. Ainda estávamos com o raciocínio e os movimentos lentos, mas vivas.”
“Era a festa de confraternização da empresa no final do ano. Eu tinha 24 anos e era uma das responsáveis pela organização, então eu não parei um minuto para nada. Depois que todos eventos programados acabaram e algumas pessoas começaram a ir embora, eu me sentei para descansar, comer e beber. Nesta hora, eu pedi uma taça de vinho ao garçom e perguntei se ainda tinha algo para comer. Meu chefe estava ali, elogiou a festa e disse que me traria algo para comer. Uma colega se sentou comigo e ficamos conversando até ele me trazer um sanduíche e um pratinho com mais algumas coisinhas. Tomei 2 taças de vinho e quando me levantei para ir ao banheiro, percebi que estava bem tonta e pensei que tinha bebido muito rápido. Fui ao banheiro e sai de lá mais tonta ainda. Fui até a porta para chamar um táxi e neste momento, meu chefe apareceu de novo e falou que me daria carona. Acordei no dia seguinte num motel, com muita dor de cabeça, boca seca e mãos adormecidas. Todos os sintomas batiam. Ele estava tomando banho e eu só tinha flashes do que aconteceu. Fiquei desesperada e me sentindo super culpada. Só perguntei se ele usou camisinha, mas mesmo assim ainda tomei a pílula do dia seguinte, para garantir. Nunca mais trabalhei à vontade e mudei de setor, porque depois disso ele continuou a me assediar.”
“Eu tinha 18 ou 19 anos. Foi bem no começo da festa, estava com meu pai, a mulher dele, minha irmã e os amigos dela. Lembro-me de que um desses amigos dela me ofereceu um copo de vodka e eu bebi. Depois de uns 15 minutos, comecei a passar mal. Tudo girava, minha pressão caiu até que eu caí no chão e não conseguia me mexer. Eu estava ali, sabia o que estava acontecendo em volta, mas não conseguia reagir, falar e nem andar. Não conseguia fazer nada. Meu pai me levou à enfermaria da festa e o enfermeiro me disse eu tinha tomado um Boa Noite Cinderela e não havia o que fazer além de esperar atingir o pico e depois baixar, o que levaria de 6 a 8 horas. Eu ouvi isso e entrei em desespero. O efeito realmente durou umas 8 horas e vomitei um monte. Meu pai, irmã e policiais foram atrás dos caras que me ofereceram a bebida, mas não os encontraram. Eles devem ter ficado à espreita e desapareceram. Provavelmente, iriam me estuprar. Graças a deus, o meu pai estava lá e não aconteceu isso comigo. Eu me senti um lixo, totalmente humilhada. Um dia, ainda vou encontra-los.”
“Foi na década de 80, num bar pequeno mas muito famoso. Eu e um amigo fomos para lá pela primeira vez e nos sentamos logo na entrada, num balcão. Pedimos uma caipirinha cada um, tomamos uns 3 goles e começamos a passar mal. Nem chegamos a tomar inteiras. Olhamos um para o outro, falamos que estávamos muito bêbados com tão pouca coisa, e a gente bebia pra caramba. Saímos e fomos embora. Cheguei em casa, deitei e vomitei. Foi a primeira vez eu minha mãe me viu mal daquele jeito.”
“Eu estava no meu próprio bar, bebendo. Tomei apenas 2 drinks e fui com os amigos a uma balada. Não me lembro de mais nada. A amiga que estava comigo disse que eu fui pegar o terceiro drink lá na balada e desapareci. Ela foi me encontrar 2 horas depois, ao lado do palco. Disseram que saímos e lá ficamos na rua por mais 1 hora e que eu passei muito mal, comecei a vomitar e não parei mais. Mas não me lembro. Voltamos ao meu bar para pegar as minhas chaves de casa, mas também não me lembro, apaguei! Minha amiga me disse que tentavam me manter acordada, com medo de que eu desmaiasse. Eu só me lembro um pouco de alguns momentos nos quais estava vomitando, já de volta ao meu bar. Não tenho nem flashes do resto da noite”
“Eu estava no meu próprio bar, bebendo. Tomei apenas 2 drinks e fui com os amigos a uma balada. Não me lembro de mais nada. A amiga que estava comigo disse que eu fui pegar o terceiro drink lá na balada e desapareci. Ela foi me encontrar 2 horas depois, ao lado do palco. Disseram que saímos e lá ficamos na rua por mais 1 hora e que eu passei muito mal, comecei a vomitar e não parei mais. Mas não me lembro. Voltamos ao meu bar para pegar as minhas chaves de casa, mas também não me lembro, apaguei! Minha amiga me disse que tentavam me manter acordada, com medo de que eu desmaiasse. Eu só me lembro um pouco de alguns momentos nos quais estava vomitando, já de volta ao meu bar. Não tenho nem flashes do resto da noite”
“Eu estava numa festa com o meu marido. Nós dois pedimos bebidas. Eu pedi um whisky, ele pediu outra coisa e saímos da mesa para dançar. Deixamos as bebidas na mesa. Quando eu voltei, tomei um gole do whisky e comecei a me sentir mal. Pensava que ia cair, não estava enxergando nada direito. Pedi a ele que me levasse embora e ele teve que me carregar, pois não conseguia chegar ao carro. Cheguei em casa muito mal, não estava me entendendo comigo mesma. Não conseguia subir as escadas. No dia seguinte, eu me senti muito mal. Estava lenta e não conseguia me lembrar direito do que tinha acontecido. Só me lembro até a hora em que pedi para ir embora. Isto faz mais de 10 anos.”
“Na balada, eu recebi de um dos donos uma pulseira VIP que me dava acesso a todos os ambientes. Então, eu entrava nos camarotes, me servia das bebidas e conversava com todo mundo. De repente, comecei a ficar mal, mas muito mal e não era como se estivesse bêbada. Eu estava acompanhada de uma amiga que não bebia e ela me levou embora e me colocou ao carro. Já a caminho de casa, eu apagava e acordava várias vezes. Acordei às 3 horas da tarde do outro dia e muito mal, com a cabeça pesada e não era como se estivesse de ressaca. Eu só pensava que a minha sorte era de estar com uma amiga que não bebia e não tomou no mesmo copo que eu. Ela disse que me viu ficando mal e se desesperou com o meu estado, porque eu tinha alucinações, apagava e voltava. Eu me lembro apenas das alucinações, mas não da sequência das coisas e nem de antes ou depois de ficar mal.”
“Tinha acabado de chegar num, no início da noite, bar e encontrei 2 pessoas que havia conhecido noutro bar na semana anterior. Sentamo-nos no balcão e eu tomei 2 cervejas na companhia deles. Tinha outro compromisso em seguida, então meu tempo era curto mas conversamos bastante. Um deles relatou que precisava de R$ 10 mil para pagar um agiota e me solicitou que o emprestasse. Inexplicavelmente, eu peguei o meu carro, fui para casa, abri o cofre e saquei a quantia exata solicitada. Tranquilamente, fechei o cofre e retornei ao bar para entregar o dinheiro. Depois disso, minha memória começa a falhar e lembro de ter ido a uma ou duas festas durante a madrugada. Não fui ao meu compromisso. Acordei no dia seguinte extremamente confuso, corri para verificar o cofre e era verdade: os R$ 10 mil haviam sumido. Estava juntando o dinheiro para uma grande viagem com a qual sonhava. Nunca me senti um lixo como neste dia. O que ocorreu é inexplicável.”